A imagem é poderosa e trágica: chamas devorando rolos de papiro, transformando em fumaça todo o conhecimento do mundo antigo. A destruição da Grande Biblioteca de Alexandria é frequentemente citada como um dos maiores desastres intelectuais da história, um evento único que mergulhou o mundo em uma idade das trevas.
Mas e se essa história dramática não for bem a verdade? A biblioteca realmente existiu? E se sim, ela foi vítima de um único incêndio apocalíptico ou de algo muito mais complexo?
Sim, a Biblioteca de Alexandria Existiu e Foi Magnífica
Primeiro, vamos confirmar: sim, a Biblioteca de Alexandria foi real. Fundada no século III a.C. por Ptolomeu I, um dos generais de Alexandre, o Grande, ela era muito mais do que um depósito de livros.
Foi o primeiro grande centro de pesquisa do mundo, uma espécie de protótipo das universidades modernas.
Em seu auge, abrigou centenas de milhares de rolos de papiro, contendo obras de filosofia, matemática, astronomia, poesia e medicina.
Eruditos como Euclides (o pai da geometria) e Eratóstenes (que calculou a circunferência da Terra com precisão impressionante) caminhavam por seus corredores. Era, sem dúvida, o cérebro do mundo antigo.
O Mito do Grande Incêndio Único
A história mais famosa culpa Júlio César pela destruição. Em 48 a.C., durante sua guerra civil em Alexandria, César ateou fogo a navios no porto. O fogo se espalhou e, segundo alguns relatos, atingiu a Biblioteca, queimando-a por completo.
Outras versões culpam fanáticos cristãos no século IV ou conquistadores muçulmanos no século VII. A ideia de um único evento catastrófico é dramática e fácil de lembrar. O problema é que a maioria dos historiadores modernos concorda que ela é falsa.
A Verdade: Uma Morte Lenta e Dolorosa
A realidade do desaparecimento da Biblioteca de Alexandria é menos cinematográfica, mas talvez mais trágica. Ela não morreu em um único incêndio, mas sofreu uma morte lenta e gradual ao longo de quase 700 anos, vítima de uma série de golpes.

Vamos analisar os “suspeitos”:
- Júlio César (48 a.C.): O incêndio de César realmente aconteceu. No entanto, é muito mais provável que ele tenha destruído um armazém perto do porto que continha rolos de papiro (talvez dezenas de milhares) destinados à biblioteca ou à exportação. Foi uma perda terrível, mas não foi o fim da instituição principal.
- Negligência e Cortes de Orçamento (Séculos I-III d.C.): Sob o domínio romano, o financiamento e o prestígio da Biblioteca diminuíram. Imperadores posteriores, menos interessados em conhecimento e mais em conquistas, cortaram fundos. Houve também expurgos políticos, como a expulsão de intelectuais de Alexandria, o que causou uma “fuga de cérebros”.
- O Golpe Cristão (391 d.C.): Este foi talvez o golpe mais devastador. O imperador Teodósio I ordenou a destruição de todos os templos pagãos. Em Alexandria, uma multidão liderada pelo patriarca Teófilo destruiu o Serapeum, um templo magnífico que abrigava uma “biblioteca-filha”, uma coleção secundária, mas ainda assim imensa. Muitas fontes confundem a destruição do Serapeum com a da Biblioteca principal.
- A Conquista Muçulmana (642 d.C.): A famosa história de que o califa Omar ordenou que os livros fossem usados para aquecer os banhos da cidade é hoje considerada um mito. Essa narrativa foi escrita séculos depois do evento e não tem base em fontes contemporâneas. Naquela altura, a grande Biblioteca original provavelmente já não existia há muito tempo.
O Verdadeiro Legado
A destruição da Biblioteca de Alexandria não foi um ato único de barbárie, mas uma longa e triste história de declínio. O conhecimento não foi perdido apenas para as chamas, mas para o desinteresse político, cortes de orçamento, instabilidade e fanatismo ideológico.
A lição da Biblioteca de Alexandria é uma poderosa advertência. Ela nos ensina que a preservação do conhecimento é um processo frágil e contínuo, e que a maior ameaça a ele, muitas vezes, não é um incêndio repentino, mas a lenta indiferença da sociedade.